Guia da Semana

Premiado como o melhor roteiro do Festival de Cannes do ano passado e vencedor do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, "Leviatã" estreia no Brasil como um dos favoritos à estatueta do Oscar. Atacando o governo russo, "Leviatã" chegou a ter cenas censuradas no país, o que não atrapalhou o seu triunfo internacional. Dado o histórico, o espectador desavisado espera um filme com sequências chocantes, entretanto, a grande audácia da trama está (apenas) em criticar o abuso de poder - e o faz com louvor.

Rodeada pelos belos cenários do norte da Rússia, a história gira em torno de um homem comum e sua luta contra o prefeito da pequena cidade em que vive. Ao lado da esposa e filho, Kolia enfrenta as corruptas garras de Vadim, que quer tirar não só o seu negócio, a sua casa e a sua terra, mas também toda a beleza que o rodeia desde a sua infância. O pacato cotidiano da família passa, então, a ser arriscado pelas infindáveis, e às vezes drásticas, atitudes do político para atingir o seu objetivo.

Por que Vadim usaria de todas as suas artimanhas por uma simples satisfação pessoal? Até que ponto Kolia pode enfrentar o orgulho sem ceder ao emaranhado sistema político que o rege? Sem uma resposta exata, estão aí as principais questões do filme, que tocam em feridas não só da sociedade russa, mas em aspectos onipresentes e atemporais: a ambição, a verdade e o poder. Tanto que é possível observar, além das referências ao governo de Putin, alusões bíblicas, como o monstro Leviatã, a história de Nabot e Acabe e o Livro de Jó.

Ao mesmo tempo em que o embate se acirra, acompanhamos as feridas na própria vida de Kolia: a mulher infeliz, o filho revoltado e os amigos que vão se mostrando cada vez menos fiéis. E, por baixo das ataduras, percebemos a complexidade das relações humanas, que vão muito além de qualquer conflito político. O auge de "Leviatã" não está apenas na beleza de sua fotografia, na acidez de sua crítica ou na crueza com que retrata o ser humano. E sim na maneira como Andrey Zvyagintsev tece delicadamente todos esses pontos colocando o cinema como o mais fiel e tocante retrato da natureza humana.

Por Ricardo Archilha

Atualizado em 3 Fev 2015.