Mulheres também jogam! Sim, elas estão presentes há muito tempo no meio dos games, mas o cenário atual permitiu que elas fossem ainda mais além. De acordo com a Pesquisa Games Brasil, as mulheres já são a maioria entre os jogadores no país desde 2016. E o número segue crescendo desde então. Foi pensando nisso que o Google criou o Desafio Change the Game, voltado para mulheres com idades entre 15 e 21 anos, com o objetivo de apoiar e incentivar a representatividade feminina no mundo de desenvolvimento de jogos. Segundo o Ministério da Cultura, a participação feminina nesse mercado cresceu 38% em 2018, mas o número total de profissionais femininas ainda é considerado baixo.
O Change the Game foi lançado em junho de 2019 e conseguiu mais de 3.000 garotas interessadas na participação, vindas de todas as regiões do Brasil. Com o fim do desafio, duas mulheres se destacaram: Isabela Fernandes, estudante do Colégio COTEMIG e Letícia Araújo, estudante do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG). As ideias e os códigos que elas apresentaram foram transformados em jogos pela TappsGames, e já estão disponíveis na Google Play, para Android: Save the World Like a Girl e Meoweb. Nós conversamos com as vencedoras e com Maia Mau, diretora de marketing do Google Play para a América Latina, por e-mail e as respostas do nosso papo você confere aqui!
1) Como foi a experiência de participar do Change the Game e como vocês ficaram sabendo e como foi o processo de inscrição?
Isabela: No meu colégio, o Cotemig, semestralmente temos o “Encontro entre Elas”, uma iniciativa para as meninas terem mais voz em um colégio técnico de TI. E, numa dessas edições, uma das palestrantes, enviada pela Google, apresentou o Change The Game e de cara veio uma chuva de ideias na minha cabeça, pois tinha acabado de ter um debate sobre a sexualização das mulheres nos games na minha sala.
Passei uns bons dias desenhando e pondo as ideias no papel, tava com bastante “fogo no olho”, mas no penúltimo dia para entregar o aplicativo simplesmente apagou todos os meus desenhos, chorei, pensei em desistir, mas minha mãe me incentivou, falou que minha ideia estava muito boa, que era para eu tentar de novo “firme e forte” e agora estou aqui (risos). Eu digo que o Change The Game foi um sonho que se tornou realidade para mim. Nele, ganhei muito amadurecimento e conhecimento. Fomos recebidas com muito carinho pela Google, a Tapps e a USP. Por fim, tenho muito orgulho de dizer que vou seguir sendo uma programadora e desenvolvendo mais jogos!
Leticia: Eu tive um professor que incentivou todas as garotas da sala a participarem do Change The Game. Ele até mesmo nos pontuou por termos submetido nossas ideias, então foi ótimo. Além de ganhar o Change The Game, conquistei pontos na matéria dele. O processo de inscrição foi bem trabalhoso, passei horas pensando e projetando, mas, depois dessa trabalheira toda, a experiência de participar do Change The Game foi única, nunca me senti com tanto potencial quanto quando estava em São Paulo. Me sinto muito mais inspirada depois de ter passado uma semana realmente vivenciando o que é estar em uma empresa tão grande quanto a Tapps Games, e também de ter conhecido pessoas tão incríveis e dedicadas como os profissionais da Tapps e da Google, realmente são pessoas que mudam o jogo.
2) Como foi o desenvolvimento da ideia conceitual do jogo e quais foram suas inspirações ao elaborar o projeto?
Isabela: Houve um debate sobre a sexualização das mulheres nos games na minha sala, no qual fui bastante ridicularizada pelos meninos, como se fosse uma pauta desnecessária. Depois disso, tive a palestra sobre o Change The Game e me lembrei de quando era mais nova e minha maior paixão eram jogos de luta. No meu bairro tinha um fliperama com Street Fighter, jogava com a Chun-Li por me sentir mais confortável jogando com uma garota, mas os meninos insistiam que ela era mais fraca que os demais personagens homens, mesmo eu sempre ganhando. Além disso, tive grandes problemas de autoestima por saber que meu corpo nunca chegaria naquele padrão.
Isso me fez pensar em como eu queria um jogo diferente, que fizessem as meninas se sentirem inspiradas e, por que não com mulheres históricas? Comecei uma pesquisa árdua revirando livros e vendo apenas pequenos boxes sobre mulheres nas diversas épocas, isso fez com eu quisesse pesquisar ainda mais e com todas as forças mostrar para o mundo que fazemos história! Quando cheguei na Tapps, decidimos que meu jogo precisava de uma protagonista e queria que qualquer mulher no mundo se sentisse feliz e representada ao jogar. A Helena é inspirada em uma das minhas melhores amigas, que é grande inspiração para mim, por ser forte em suas lutas, sendo uma mulher negra e trans. Nenhuma das mulheres em Save The World Like a Girl são sexualizadas, procuramos representá-las como fofas, mas fortes e com histórias incríveis.
Leticia: O processo de desenvolvimento conceitual foi trabalhoso mas muito prazeroso também. Criar um novo universo para um jogo me demandou um bom tempo e uma boa quantidade de criatividade. Passei diversas horas na biblioteca e em laboratórios de informática da minha escola desenhando e projetando até que o jogo ficasse do jeito que eu queria. Passei tanto tempo projetando que quase não consegui mandar. Quando finalizei já era o último dia e faltavam algumas horas para as inscrições serem finalizadas. As coisas, ou melhor, as criaturas que mais me inspiraram durante o projeto de criação foram meus gatinhos. Eu sempre soube que queria ensinar o que sei e, de alguma forma, juntei minha paixão por desenvolvimento front-end com a paixão pelos meus gatos (e qualquer outro gato, honestamente) e MeoWeb foi o resultado.
3) Qual é a sua expectativa de ver esse jogo acessível para outros jogadores?
Isabela: Espero que todos, principalmente as meninas, ao jogarem Save The World Like a Girl consigam se sentir mais representadas e inspiradas. Além disso, desejo que entendam que “também podem” e continuem mudando o jogo, para um futuro onde seremos mais respeitadas nos games e nas demais áreas de tecnologia. Para que nos vejamos assumindo grandes papéis e lotando páginas de livros de história.
Leticia: Minha expectativa é que as pessoas se interessem por desenvolvimento front-end e que busquem aprender mais após o jogo. O conhecimento deve ser acessível e não há melhor forma de se alcançar uma base jovem se não através de um jogo.
4) Qual a importância de projetos como o Change The Game, que incentivam a participação feminina no campo do desenvolvimento de games?
Maia Mau: Sabemos que as mulheres representam quase 60% dos jogadores no Brasil, apesar disso, apenas 13% das vagas em carreiras de desenvolvimento são ocupadas por mulheres. É por conta desta diferença na participação feminina nas áreas de desenvolvimento que acreditamos que iniciativas como esta são tão importantes. Para que estes números mudem, é necessário mostrar possibilidades de carreiras em engenharia, programação e desenvolvimento. Nossa intenção é investir e mostrar, cada vez mais para mulheres que elas podem sim ocupar também estes espaços e carreiras.
5) Em um ambiente amplamente machista e tóxico, para vocês, por que os games não contam com tanta presença feminina, principalmente no Brasil?
Maia Mau: A luta pela presença feminina ocorre em todos os âmbitos sociais e, historicamente, o mercado tecnológico levou tempo para reconhecer as mulheres como profissionais de fato. Justamente para reverter essa visão que seguimos investindo em diversidade e igualdade de gênero nessa área, principalmente.
Isabela: Infelizmente, a maioria das meninas, ao invés de ganharem videogames, computadores, robôs ou carrinhos, ganham bonecas, panelinhas, vassourinhas, etc. E isso ensina, desde cedo que, mesmo no século XXI, mulher não deve realizar atividades que exigem esforço físico ou raciocínio lógico. Tudo isso resulta em pouquíssimas mulheres seguindo áreas de tecnologia, como o desenvolvimento de games por exemplo, com homens criando mundos e personagens que sem representatividade feminina, propiciando um ambiente ainda mais desmotivador e tóxico para nós. Mas, acredito que iremos mudar isso, e veremos cada vez mais “Isabelas” e “Letícias” por aí!
Leticia: Historicamente, os jogos possuíam os homens como público alvo e não faziam grandes esforços para atender as demandas do público feminino. E esta, em alguns momentos, é diferente das demandas do público masculino, e, além de não enxergar as mulheres como possíveis consumidoras de seus jogos, há a representação feminina, muitas vezes, de forma extremamente sexualizada nos jogos. Esses são dois fatores que desincentivam a participação feminina nos jogos, tanto como jogadoras casuais quanto profissionais. Felizmente, o ambiente de jogos está mudando aos poucos e, espero que logo possamos ter uma certa igualdade nesse ambiente.
6) Qual suporte vocês tiveram da escola e da família para participar do desafio?
Isabela: Foi a escola que, através das palestras “Papo entre elas”, me apresentou o desafio. Eles realizam um esforço muito grande, por ser um colégio de TI e, nós meninas, sermos a minoria. Logo, fui muito bem acolhida e incentivada para fazer o ambiente de tecnologia mais seguro e justo, me inscrevendo no desafio. Minha família também me apoia muito e é essencial. Minha mãe sempre me acompanha e quando quis desistir de entregar o desafio, falou com toda sinceridade do mundo como eu era forte, que minha ideia era importante e que era para eu continuar. Também tenho gostos muito parecidos com minha irmã mais nova, Marcela. Amamos compartilhar nossas ideias e sinto que estou sendo grande inspiração para ela.
Leticia: Meu professor teve um grande papel no incentivo à participação. Além disso, sempre tive à minha disposição os laboratórios e bibliotecas da minha escola para que eu pudesse pesquisar e desenvolver minhas ideias. Minha escola foi essencial. E a minha família teve grande participação ao opinar em algumas coisas que eu queria colocar no jogo.
7) O que vocês mais jogam e quais são suas plataformas preferidas?
Isabela: Continuo apaixonada por jogos de luta como Super Smash Bros, mas, principalmente hack and slashes como Hyrule Warriors. Contudo, tenho adquirido uma grande paixão por jogos indies de protagonismo feminino forte como Gris, Celeste e Dandara! Minhas plataformas favoritas no momento são o Nintendo Switch e a Steam.
Leticia: Eu gosto de jogar Overwatch, alguns jogos de história como Life Is Strange e jogos de RPG Maker como Mad Father e Paranoiac. Penso que minha plataforma preferida é a Steam, onde comprei a maior parte dos meus jogos e onde os jogo.
8) Como a pluralidade de gêneros pode contribuir para a indústria?
Maia Mau: Acreditamos que a diversidade abre diferentes pontos de vista. Além disso, será fundamental para evitar o ambiente que é muitas vezes tóxico para mulheres. Esse ambiente representa as mulheres em vários momentos apenas de forma sexualizada, objetificada. Além disso, sabemos que empresas mais diversas têm maior lucratividade.
9) Após o Change The Game, quais são as expectativas/projetos para o futuro?
Isabela: Pretendo seguir na área de tecnologia e, com ela ajudar as pessoas. Como amo o desenvolvimento de games, gostaria de fazer mais jogos para representar também outras minorias, trazendo ao jogador esperança e reflexão de pensamento.
Leticia: Espero continuar desenvolvendo algumas ideias de jogos e, no futuro, estudar formalmente áreas relacionadas com o desenvolvimento de jogos.
Save the World Like a Girl e Meoweb, já estão disponiveis gratuitamente para Android no Google Play. Por fim, gostaríamos de agradecer à ajuda de Caroline Alves na elaboração das perguntas deste entrevista.
Pizza Fria
Reviews, notícias e tudo sobre o mundo dos gamesPor Álvaro Saluan, Pizza Fria
Atualizado em 3 Mai 2020.