Eu trocaria o meu universo musical pelo universo dele, disse Paco de Lucia sobre o nosso grande Guinga. Eu também trocaria. Tudo bem que não seria muita vantagem para o compositor carioca, mas permita-me dizer isso só pelo efeito da frase. Lá estava eu na plateia do Sesc Vila Mariana, ansioso pela aparição do dentista-compositor. Dono de uma música capaz de fabricar sorrisos. Guinga no violão, Paulo Sérgio no clarinete e Bolão na bateira. O primeiro trio com cinquenta integrantes da história da lógica. O som preenchia o teatro. E a gente se esforçava para entender como três músicos soam feito uma orquestra. Eles brincavam de música. Crianças no quintal de casa, depois de chegar da escola.
De repente, Senhorinha. Música de melodia saborosa e letra de Paulo César Pinheiro, o que já é um adjetivo. Lembro-me da minha infância no concreto da cidade, invejo a senhorinha da música, correndo pelos gramados da fazenda imaginária. A plateia flutuava em silêncio. O teatro ia virando cenário de livro do Guimarães Rosa. Meio branco, sem nada muito definido, só linhas pelo chão apontando os caminhos. Na verdade, aquele era o cenário do Guinga. Da música dele. Toda canção que nos constrói uma casa merece morar na eternidade.
O meu primeiro contato com a música do Guinga foi há um bom tempo. Pouco se falava do compositor quando minha tia me deu um CD dele de presente. (Naquela época, a gente ainda comprava CD). Confesso que fiquei meio desconfiado ao ver o encarte com as palavras "Simples e Absurdo". E os dois nomes que assinavam o trabalho: Guinga e Aldir Blanc. Escutei o CD durante quatro meses sem parar. Overdose de Guinga. Ponto final nas drogas que a juventude muitas vezes coloca no rádio.
Voltemos ao show. Guinga conversa com seus companheiros de palco entre uma música e outra. Conta que, Bolão, ao ver Paulo Sérgio enchendo a mala de CD, perguntou: - vai levar os CDs para passear? Música assim merecia vender mais. Por que é tão difícil ligar a TV e dar de cara com o Guinga? Por onde anda o bom gosto dos programadores de mídia? Será que algum deles está na plateia? Talvez aquele senhor quieto na fileira J, que evita bater palmas lutando para não confessar a sua preferência pelo som do compositor carioca.
Fim do show. Eles tocam o bis e voltam para o camarim discreto dos artistas das minorias. Na saída do teatro, o show continuava na minha mente. O som transparente do clarinete do Paulo Sérgio, as melodias mágicas do Guinga e a delicadeza de um baterista conhecido como Bolão. Valeu navegar pelo jornal na tentativa de pescar um programa em uma noite de quinta-feira. Um discreto anúncio apresentava o nome que eu tanto estranhei naquele encarte curioso da minha adolescência. Guinga.
No Fundo do Rio tem Lendas Brasileiras. Nada melhor que Chá de Panela para escutar o Guinga, Nítido e Obscuro. Som de Melodia Branca. Depois que o show começar, por favor, Nem Mais Um Pio. Música cheirosa, Perfume de Radamés. Dos Anjos, dos que sabem fazer. Cheio de Dedos para chorar um violão. Tem Choro pro Zé, pro Sargento Escobar e tem pra você também. Di Maior, Di Menor, com muita história no meio. Dá o Pé, Loro. Mas não canta agora que já tocou a última campainha. Lá, no Noturno Leopoldina, o céu tem Sete Estrelas. Pra Quem Quiser Me Visitar, moro no Simples e Absurdo.
Assim é a música do Guinga. Tem uma língua própria. E fala por si só.
O que faz: Publicitário.
Pecado gastronômico: Qualquer prato preparado pela minha avó.
Melhor lugar do Mundo: Aqui e agora, como diria o Gil.
O que está ouvindo no carro, iPod, mp3: Ulisses Rocha, Pat Metheny, Chico Saraiva
Fale com ele: [email protected]
Atualizado em 26 Set 2011.