Guia da Semana

Pense em nomes da história da gastronomia e provavelmente virão a mente Câreme, Vatel, e Escoffier. Grandes chefs laureados da cozinha atual? Bocuse, Adriá e Robuchon. Alguma mulher? Só Anne-Sophie Pic, a única a receber três estrelas do prestigiado e temido ranking Michelin.

Foto: Divulgação

Mesmo com uma rotina que vai das 10h às 1h, a chef Ana Luiza arranja tempo para os filhos e projetos pessoais

Se o cenário mundial ainda aponta que a cozinha como território eminentemente masculino quando profissional e sofisticada, no Brasil tem gente mudando essa história. Aos 32 anos, casada com o chef Yann Corderon e mãe de Pedro, com quase quatro anos, e de Antoine, com um pouco mais de três meses, a chef Ana Luiza Trajano arrisca a palavra entrega como chave da resposta da diferença entre homens e mulheres no comando das panelas. "Cozinhar é um ato de amor, e nós, mulheres, trazemos isso melhor pela maternidade. O senso de responsabilidade aumenta muito mais quando se é mãe, fazendo com que queiramos entregar o melhor para todos". A junção de todas essas histórias é a chave do sucesso do seu Brasil a Gosto, que chega ao quinto ano justamente por unir a disciplina e a energia herdadas do gene empreendedor das mulheres Trajano com a criatividade e a inteligência da artista-pesquisadora, atributos temperados pelo toque feminino e maternal da chef.

Refúgio e paixão

O Magazine Luiza, propriedade da família, já existia há 20 anos na cidade de Franca, interior de São Paulo, mas ainda não era a potência dos dias atuais quando Ana Luiza nasceu, em 1978. "Mesmo com todo o trabalho, tínhamos uma vivência diária com ela, pois minha mãe sempre fez questão de almoçar e jantar em casa". E é da casa que a menina Ana pegou o gosto pelo fogão. "Nossa cozinheira fazia pratos bárbaros na parte salgada, mas não tinha mão boa para massa, que sempre solava. Aos sete anos, aprendi a fazer bolos, e desde as primeiras fornadas, meu pai amou. Aí percebi que, fazendo os bolos para nossos cafés da tarde, ganhava o direito de passar mais tempo na cozinha, um território que era proibido para as crianças da casa", explica a chef, que tem um irmão e uma irmã.

A paixão virou uma escolha profissional quando veio para São Paulo e viu que havia campo para trabalhar. No entanto, fez primeiramente o curso de administração, para depois se formar na Italian Culinary Institute for Foreign Professionals, em Milão, e estagiar no restaurante Beccofino, em Florença. "Ter feito Administração me ajuda muito, pois sou uma chef que entende do meu negócio e, aqui, eu sou dona".

A executiva das panelas

Função essa que ela exerce com maestria e simplicidade. Como todo bom chef, ela faz questão de ir à mesa de cada cliente saber da opinião sobre os pratos, a qualidade do atendimento e outras opiniões. E, como os melhores, ela se faz presente nos detalhes do serviço mesmo quando não está lá. São coisas miúdas, como o mimoso coador, trocado a cada xicrinha de cafezinho coado na frente do cliente.

Essa preocupação com a entrega e com os clientes vem no DNA. "As mulheres da minha família são muito fortes e entregam o que se propõem. A minha mãe responde até e-mail de cliente, ela é daqueles que vai lá e faz. E isso também diz de mim, pois meu compromisso é com os clientes, que vêm aqui para me acompanhar."

De um país, um sonho e um livro

Aos 25 anos e com cara de menina, a bem nascida Ana Luiza ouviu de tudo quando afirmou seu interesse em abrir um restaurante. Até de Sergio Arno, de quem foi aluna e estagiária, ouviu que era uma louca. "Ele disse assim mesmo - você, que não é ninguém, quer abrir um restaurante numa rua desconhecida? E de cozinha brasileira?" Antes que titubeasse, a força dos Trajano novamente falou mais forte. "Mesmo que minhã mãe quisesse que eu encarasse os negócios da família, ela mandou eu pensar ainda mais e escolher com segurança e desejo, pois não queria que eu voltasse derrotada. Isso é coisa de mãe".


Foto: Divulgação

Frango de leite na cerveja com polenta, milho e couve refogadinha, no menu bandeirante do Brasil a Gosto

Em nome dessa qualidade, voltou da Itália determinada a mergulhar na cozinha brasileira. "Eu aprendo vivenciando e não posso falar do que não conheço. Senti necessidade de viajar para conhecer". Ana Luiza juntou um ótimo time, formado pelo fotógrafo Alexandre Schineider, a ceramista Gisele Gandolfi e o sociólogo Carlos Alberto Doria, com quem montou, em 2003, o projeto Brasil a Gosto, um livro que retrata os hábitos e sabores de 22 cidades espalhadas pelas cinco regiões. Lançado em 2005, a publicação foi posteriormente premiada pelo Cook Book Prize.

No ano seguinte ao lançamento do livro, abriu o restaurante numa época em que a única casa de referência era o Tordesilhas, de Mara Salles. Casa aberta, reconhecimento conquistado, com o prêmio de melhor cozinha brasileira nos dois primeiros anos do estabelecimento.

No terceiro ano, o baque. "Quando não fui reconhecida como a melhor, me fez repensar nos meus escorregões, e isso me deu sangue nos olhos. Os prêmios de fato importantes não por serem glamurosos, mas por trazerem retorno financeiro e manterem a casa cheia por um ano. E se o cofrinho não render tantos couverts, a gente não paga a conta no final do dia".

Brasilidade no último

O chef destaca que a opinião que mais lhe importa não são a dos críticos, mas dos clientes. E esses sabem que, ao chegar ao quinto ano e ao segundo filho, o Brasil a Gosto de Ana Luiza Trajano vai muito bem e obrigado. Para a celebrar a data, a chef retomou suas viagens gastronômicas com quatro menus pura raiz lançados nas estações. O Piauí foi o primeiro e, em março, entrou o cardápio de homenagem a São Paulo. "Sou francana, e por isso escolhi a cozinha do estado para brindar esses cinco anos. E eu, que sou paulista, nunca tinha parado para olhar a nossa cozinha, esse olhar para dentro. Cuzcuz, bolo de milho e outros pratos reconhecidos como mineiros são, na verdade, paulistas, só que foram deixados de lado e pouco identificados ao estado depois da segunda leva de imigração, responsável pela introdução da cozinha italiana".

Foto: Acervo pessoal

A família de mestres-cuca representada no quadro que embeleza o quarto do pequeno Antoine

A cozinha bandeirante apresentada no Brasil a Gosto transforma o simples em sofisticado, como no Suan (nome popular para o corte da espinha dorsal) de porco a baixa temperatura, com canjiquinha e refogado de chuchu (R$ 58), ou na Sinfonia do milho, pequenas sobremesas feitas com o cereal, apresentando num grande prato curau, bolo de milho cremoso e canjica com rapadura e gengibre (R$ 22).

Boa parte das ideias desse cardápio vieram no período de barriga do pequeno Antoine. "A maternidade me ajudou a aterrar e as duas gestações foram muito felizes, pois fico extremamente criativa, num estado de plenitude perceptível nos pratos".

E onde isso aparece? Segundo a chef, nos molhos, mais consistentes no conjunto dos aromas, e na delicadeza da combinação dos ingredientes. "Cozinha é um exercício constante e contínuo, pois todo o dia, se começa pelo tomate, pela cebola, caldos, cortes e cocções. E amanhã terá mais".

Dos desafios que mais gosta no novo cardápio, Ana Luiza destaca o frango caipira, que traz o tradicional cuzcuz cozido no vapor. "Ele é um exercício diário dos mais difíceis, pois o frango do Brasil a Gosto não pode ser qualquer frango. Ele tem de ser perfeito e estar belamente montado, pois, em cozinha brasileira, a apresentação é fundamental para remover preconceitos".

E a chef consegue, acrescentando ainda a por muitos detestada moela num prato de R$ 58. "Faço moela junto com o caldo do frango e ofereço à parte, num pequeno potinho. Como está bonito, a pessoa vai experimenta e gosta". Delicadeza e força de uma mãe Trajano que ressalta no paladar, mostrando os gostos dessa artesã da cozinha nacional. "Entrei nesse meio e abri o Brasil a Gosto pois quero contribuir de verdade para que a gastronomia brasileira seja reconhecida. E para isso eu tenho de ser cada vez melhor".

Atualizado em 7 Ago 2012.