Guia da Semana

Por Bruno Cesar Dias

Um espectro ronda a alta gastronomia: as casas de maitre. A diferença pode até passar desapercebida para quem não é muito atento ao setor. Comandadas por empresários que construíram suas carreiras desde os primeiros degraus da hierarquia dos restaurantes até os maiores postos no salão, estabelecimentos como o La Fiducia Ristorante, no Rio de Janeiro, e Piselli, em São Paulo, firmam-se no cenário nacional como referências de cozinha elevada e atendimento impecável.

Ser dono de finos e chiques restaurantes, daqueles com guardanapo de linho e pratos elaborados, era uma atividade para poucos até o início dos anos 80. O alto investimento era bancado apenas pelo setor hoteleiro ou por famílias abonadas e nascidas em boa mesa. Quem não tinha berço contentava-se em abrir casas de apelo popular.

Com o boom da gastronomia a partir da década de 90 e a melhora no cenário econômico nacional, jovens que se formaram chefs nas mais diversas escolas nacionais e internacionais e partiram para a abertura de negócios proprios de alta cozinha seguindo um novo padrão: pequenos estabelecimentos com até 40 mesas e foco na criação de sofisticados pratos nativos e/ou releitura de culinárias estrangeiras. Na teoria parece perfeito, mas o sucesso vem para poucos: são vários os restaurantes que sequer passam do primeiro ano de vida.

Sob nova direção

Na contramão desse movimento, uma nova leva de casas vem se firmando no imaginário da clientela gourmet. Com menos de dois anos de funcionamento, o La Fiducia Ristorante recebeu as melhores críticas e prêmios na cena carioca no ano passado. Mérito de Valmir Pereira e de seus 37 anos de vivência no setor.

"Nossa profissão é uma das únicas que não pode ser substituída por robôs, pois colocamos alimento na boca das pessoas. Isso exige calor humano e extrema atenção", comenta. Natural de Cariré, no sertão cearense, Pereira chegou ao Rio de Janeiro com 18 anos e, segundo o próprio, foi trabalhar na cozinha porque nada sabia fazer. De auxiliar, virou garçom e passou por diversos estabelecimentos até ser maitre do cultuado Le Bec Fin, uma das primeiras e já finadas casas francesas da cidade, no final da década de 70. Lá começou a escrever sua história na gastronomia nacional ao criar o prato Cravettes flambeé a la princesse. Os camarões temperados e flambados foram feitos especialmente para Lady Di em sua passagem pelo Rio no ano de 1982.

No mesmo restaurante, Valmir Pereira conheceu e se apaixonou pelo universo do vinho. Viagens, cursos e palestras entraram na sua rotina até se formar sommelier pela ABS. Mas ele não estava satisfeito. Juntou-se a um grupo de investidores e abriu, em 2000, o D'Amici, casa que comandou até 2006. No ano seguinte, se propôs um desafio ainda maior. Saiu da sociedade e, junto com o empresário Felipe Gilaberte, abriu o La Fiducia (confiança em italiano). "Isso aqui é meu sonho acalentado há 25 anos, onde pude fazer tudo como sempre quis, em total confiança e parceria com Felipe".

Em cada pedaço da casa, inaugurada em 2009, estão as marcas do sonho. As iniciais L e F formam o batente da porta de entrada, chamando atenção para a casa ainda na rua. Ao entrar, a adega, com mais de 220 rótulos e 1500 garrafas no estoque, se impõe no salão desenhado pelo arquiteto Helio Pellegrino. Do Torteloni di faraona, um típico ravióli de galinha d'Angola - prato símbolo da casa -, ao novíssimo petit gateau de milho e queijo recheado com goiabada, tudo passa pelo crivo do restauranteur, que prefere ser chamado de sommelier.

O maitre, para Valmir Pereira, é o principal advogado do cliente. "Já peitei muito chef que deixou sair pratos mal-feitos e de gosto duvidoso". Os embróglios com os comandantes da cozinha acompanharam Valmir Pereira inclusive na abertura da tão sonhada casa. Uma jovem chef paulistana em ascensão foi chamada para comandar o coração do restaurante. "Ela tinha muita teoria, mas pouca prática, nem atenção ao cliente", comenta Pereira. A clientela que Valmir conquistara ao longo de tantos anos começou a reclamar. "Mudamos o cardápio sete vezes em um ano e chegamos à conclusão que não dava mais. Trouxe de volta os meus cearenses que já trabalhavam comigo há mais de 30 anos e não tivemos mais problemas. Mesmo jovem, o restaurante tem grande maturidade".

A equipe, composta por cerca de 40 profissionais da cozinha e salão, é afinada. Mesmo assim, nada passa sem o crivo do dono. Da indicação de um vinho à escolha de fornecedores, todos os funcionários reportam-se a Valmir. Mas a principal e preferida atribuição dele é ir de mesa em mesa para conversar com os convivas mais habituais, trajando o mesmo modelo de casaca que vestia no Le Bec Fin. "O cliente é o nosso patrão, é quem paga os salários e as contas, e precisa receber o melhor e ser respeitado nos seus gostos".

Marca pessoal


A cartilha também é seguida pelo restauranteur Juscelino Pereira (sem nenhum grau de parentesco com Valmir). Natural de Joanópolis, interior de São Paulo, seu primeiro contato com o mundo da gastronomia começou com uma plantação de ervilhas que não deu certo. "Colhi na época errada, estragando todas as sementes. Sem dinheiro nenhum, que foi todo investido nessa aventura, tive de vir trabalhar em São Paulo".

Ao chegar na capital, foi indicado para trabalhar como garçom no restaurante Casarão, uma casa popular no bairro da Casa Verde. A atenção dedicada aos clientes o levou para os salões do restaurante do Jockey Club e do Saint Peter's Píer, onde conheceu Rogério Fasano. O empresário gostou do seu trabalho que o levou para integrar a equipe do Hotel Fasano, em 1992. Três anos depois, aos 30 anos, era maitre do Gero, então a joia da coroa do Grupo.

"Eu estava feliz, mas sabia que precisava ter o meu próprio estabelecimento antes dos 35 anos. Estudei muito, passei noites e mais noites sem dormir até tomar a coragem e o impulso necessários para abrir o Piselli." Inaugurado em 2004, traz no nome as ervilhas que mudaram seu caminho.

Junto com o sucesso da estreia, não faltaram as críticas que acusavam o restaurante de ser uma cópia das casas onde Juscelino aprendeu o riscado. Ele rebate: "as pessoas não conhecem a fundo a sua paixão, não sabem o quanto você sofreu, ralou, comeu, bebeu para se chegar a algum lugar. Quando um estabelecimento consegue fidelidade da clientela, você acaba incomodando os outros. Somente faço meu trabalho, que é colocar o foco no cliente", argumenta. Talvez seja o segredo do sucesso e da criação do (ainda) pequeno império gastronômico do empresário. Consolidado o Piselli, o Zena Caffé foi lançado em 2009 sob o comando do filho Dudu. No ano passado foram duas novas casas: Ministro 1153, em abril, e Tre Bicchieri, em junho.

O eixo do foco passa diretamente pela qualidade das cozinhas das casas, que contam com jovens chefs de talento, como Paulo Kotzent (Piselli) e Carlos Bertolazzi (Zena Caffé). No entanto, a assinatura dos pratos é sempre compartilhada com Juscelino. "Tento apresentar para a clientela as raízes profundas da cozinha italiana, descobrindo receitas familiares e pratos das regiões menos conhecidas". É daí que vem o Agnoloti dal plim, pequenas massinhas recheadas com carne e verdura e amassadas como num beliscão, servidas com molho de manteiga com o brodo do cozimento e coroado com parmesão, o Capelinne com grantio (caranguejo) e o Risotto alla barbabietola e scaloppa di foie gras.

O prato típico é feito com caldo de beterraba e servido com uma grossa fatia de foies gras. O risoto é tão bom que entrou na seleção do livro Os 101 melhores risotos do mundo, editado pela Guida Gallo, associação italiana defensora da tradição desse prato. Marca cabal de um autêntico criador "Me envolvo em todas as áreas do negócio, do desenho do ambiente à estratégia de comunicação, e é lógico que na criação há inspiração. No entanto, a sacada é onde buscar essas inspirações", explica Juscelino sem falsa modéstia.

Por Bruno Cesar Dias

Atualizado em 7 Ago 2012.