Guia da Semana

Foto: Getty Images

Aos 13 anos, passei o Natal em Portugal; aqueles de cartão postal, com neve, gelo, esportes de inverno, chaminés, pinheiros, azevinho, roupas de veludo, peles, gorros e cachecóis.

Fazia uns 3ºC. A paisagem lusitana, que conhecia de vários verões, ficara irreconhecível, graças ao orvalho, à decoração das ruas e ao concurso da melhor vitrine, que mobilizava desde shoppings até lojinhas. Confeitarias, padarias e empórios exibiam quase que exclusivamente produtos típicos do fim do ano, como couves queimadas pela neve (ficam de uma maciez extraordinária!) e castanhas para assar na lareira. A isso, se somavam especiarias e comidas "quentes", muitas conservadas desde o verão: canela, cravo, mel, pimentas, vinho do Porto, licores, carne de porco, bacalhau seco, presunto salgado, compotas e frutas passas.

As casas ficavam deliciosamente quentes graças à intensa produção dos fornos, de onde saiam bolos, roscas, pudins, carnes e acompanhamentos - tudo assado!

Fazia frio e anoitecia cedo. O país do fado melancolicamente preparava-se para a noite e o dia de Natal, considerados momentos íntimos e familiares, de recolhimento e meditação.
O movimento das compras - bem mais sutil que o nosso - simplesmente cessou no dia 23, até porque tudo fecha. As ruas ficaram vazias e silenciosas, perturbadas apenas pelos vizinhos batendo à porta para dar os cumprimentos.

Aqui, é claro, o cenário é outro. O calor dos trópicos sempre atingiu potência máxima por época do Natal, mesmo antes do efeito estufa, El Niño e aquecimento global. Por isso, pergunto-me como as anfitriãs conseguem assar tanta comida durante horas em casas sem ar condicionado, em pleno dia 24.

Numa dessas semanas que fez 35ºC em plena terra da garoa, avistei executivos saindo de um banco. Trajavam camisa de manga longa grossa e fechada até o pescoço. Também usavam gravata, paletó escuro forrado, meia escura comprida, sapatos de pelica escuros e fechados, além de calças compridas e escuras. Não sei se foi o espírito natalino, mas senti compaixão por eles.

Etiqueta só faz sentido se fizer sentido. Sim, leitor, sei que a frase é redundante e óbvia, mas a idéia é reforçar como isso é óbvio. Desde esse dia, tenho pensando em propor um novo padrão de elegância, que faça sentido à realidade brasileira. O novo terno seria composto por camisa de manga curta branca de tecido leve, calça de linho, papete e chapéu panamá. Seria o fim da ditadura do cabelo liso e tantas convenções sociais ridiculamente importadas e incorporadas por decorrência de nossa total falta de auto-estima - que sempre leva a valorizarmos o que é estrangeiro.

E o Papai Noel, com aquela roupa toda? Proponho bermudão vermelho, regata ou camiseta de algodão branca e chinelo preto. Decretaria, para bem de todas as cozinheiras do hemisfério Sul, absolutamente brega assar qualquer coisa no Natal. No lugar de peru, chester, tender, pernil, bacalhaus e arrozes de forno, gratins, bolos, pudins, frutas secas e especiarias, chique mesmo seria servir frutas da estação, pescados, antepastos, frios, saladas, bebidas refrescantes e sobremesas geladas.

Outro dia, o Derivan, um dos bartenders mais respeitados do Brasil, ensinava na TV como fazer um ponche de frutas sem álcool para o Natal. Amei a ideia. A bebida é linda, colorida, fresca, leve e aderente a tempos de Lei Seca. Por que não adotar?

Não que eu não goste da comida típica do Natal Boreal, longe disso. Mas prefiro comer peru na Páscoa, quando a temperatura torna a experiência aprazível. Das coisas servidas na ceia, minha preferida é o vinho espumante, que incrivelmente costuma ser a única coisa refrescante. Sugiro nos inspirarmos na leveza do champanhe para criar todo o cardápio. Que tal salpicão de frango, salada verde, salmão grelhado com molho de maracujá, purê
de mandioquinha, farofa de banana e sorbets (sorvetes) de frutas?

Ninguém aguenta comer muito à meia-noite, menos ainda se estiver um baita calorão. Pessoalmente, começo até a suar. Não à toa sobra aquele mundaréu de comida. O pior é que quando você finalmente consegue dar fim às sobras, vem o Réveillon. Os pratos e as quantidades natalinas repetem, ninguém sabe o porquê. No fim, o que era um prazer, torna-se um problema: você enjoa, desperdiça comida e fica com o mico de recuperar a forma e o saldo bancário perdidos com a comilança. Por quê? Pra que?

Sem dizer que geralmente a ceia começa a ser feita dias antes - para dar tempo de cozinhar tanta coisa - e os pratos vão sendo deixados em cima da mesa, como que decorando a casa. Qualquer nutricionista teria uma síncope ao ver carnes e doces com ovos expostos por horas a um bafo de 30 graus. Geralmente, as pessoas saem das festas de fim de ano com um pouco de azia, acreditando que comeram demais. Mal sabem que comeram também coisas pesadas demais para a estação do ano e a hora do dia e que, infelizmente, não estavam no seu melhor estado, dadas tantas horas fora da geladeira.

Tento lembrar o quê se comemora no Carnaval. Pergunto a outras pessoas e elas teimam que não é um feriado religioso (!). Tenho dúvida sobre o que mesmo aconteceu com Jesus na Páscoa. Por vergonha, prefiro nem citar o Corpus Christi. Por algum motivo lamentável, de todos os feriados santos do calendário nacional, o único no qual a maioria das pessoas ainda lembra o que realmente é comemorado é o Natal. Tenho receio de que, em algumas gerações, as crianças achem o que Natal é o aniversário do Papai Noel.

Esqueçamos as nozes, as compras, a árvore, a roupa nova. O Natal é o maior aniversário do mundo. Como em todo aniversário, comemora-se a vida. Nesse caso, a vida de Jesus na Terra e seu exemplo, no mínimo, interessante. Os crédulos podem agradecer por Jesus permanecer velando a humanidade, mesmo sabendo que mais de dois mil anos depois, amar uns aos outros ainda é lição não aprendida. Creio que por isso que tanta gente sente tristeza no Natal: porque ainda temos tanto a aprender... tantas coisas às quais nos desprender.

Nesse Natal, desejo menos compras, menos comida, menos importados, menos panetones que sobram até o Carnaval, menos sal de fruta, menos acidentes de trânsito. E menos trânsito! Desejo menos presentes comprados por força de convenção, que gerarão menos trocas e menos disputa por vagas de estacionamento. Menos notícias, menos TV, menos e-mails. Menos calor, se o Obama ajudar. Menos excesso. Menos falta de sentido. Pelo menos no Natal, amemos no máximo de nossas potencialidades e procuremos nos ater ao sentido das coisas. Façamos comida de festa para lembrar que é um dia de festa, tomando cuidado não para que a festa seja só o banquete. Feliz Natal!

Quem é a colunista: Com formações em Publicidade e Gastronomia, Rosa Fonseca é chef de cozinha, professora e colunista.

O que faz: Trabalhou em restaurantes como o Félix Bistrot e o Beth Cozinha de Estar. Hoje, atua como personal chef.

Pecado gastronômico: Chocolate e queijo da serra.

Melhor lugar do Brasil: Minha casa.

Fale com ela: [email protected]

Atualizado em 7 Ago 2012.