Guia da Semana

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"Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve" disse certa vez Nelson Sargento, referindo-se a uma das figuras mais brilhantes que a música popular brasileira ja teve.

Negro, carioca, quarto entre sete filhos, Cartola estudou apenas até a quarta série. Ainda assim (ou talvez exatamente por isso), o samba não poderia ter escolhido melhor representante. Aliás, me permitirei colocar as coisas desta forma: foi o samba que escolheu Cartola, e não o contrário.

Cartola é, na minha opinião, uma espécie de Ibrahim Ferrer brasileiro, de história e papel histórico semelhantes. A importancia de Cartola para a música popular brasileira é tão grande que, imagine você, foi ele, junto de mais alguns amigos, que escolheram o nome e a famosa dupla de cores da Mangueira. E já na primeira participação da escola no carnaval carioca eles ganharam com um samba-enredo de autoria de Cartola.

Este mesmo samba que também escolheu Noel Rosa, Adoniram Barbosa, Paulinho da Viola e tantos outros, parece ter parado de escolher faz tempo. Me lembro da primeira vez que ouvi algo do Cartola, ou Noel Rosa (os dois chegaram até mim mais ou menos ao mesmo tempo), e a primeira coisa que me veio a cabeça foi "isso não pode ser samba! Pelo menos não como eu conheço". Não tinha nada a ver com Molejo, Negritude Junior, Exaltasamba, ou o que quer que estivesse tocando nas rádios do gênero na época. Havia uma mudança de discurso, de postura, era nitidamente outro estilo. As letras, principalmente, eram totalmente diferentes. Era como se o samba tivesse surgido em outro país e hoje tentássemos faze-lo aqui, ou vice e versa: pense no Sinatra cantando Garota de Ipanema...

Bom, se contarmos com a possibilidade do samba ter sido um movimento de época, que o samba como descrito acima não existe mais (ou que está paulatinamente minguando ao ver morrer seus representantes), o que nos resta dele? Qual legado nos foi deixado? Sobrou apenas a saudade? Não, com certeza, muito mais do que isso.

Muitas bandas atuais dos mais váriados gêneros tem buscado, nestes registros antigos, inspiração para escrever. Bandas como Los Hermanos, Mundo Livre S/A e o próprio Marcelo D2, (com seu hip hop com samba) são apenas alguns dos que se inspiraram nesse nosso passado para fazer sua música. Marisa Monte, por exemplo, em seu último trabalho gravou um disco de sambas. Por sua vez, os novatos do Mombojó, do Bonsucesso Samba Clube e do Porcas Borboletas certamente, em algum momento, mexeram no baú dos pais e, no meio da poeira encontraram muita coisa interessante.

Isso tudo me deixa um bocado ansioso, inquieto a respeito do futuro da música brasileira, e, principalmente sobre o futuro do samba. Aonde é que ele vai aparecer novamente e de que forma aparecerá? Será, inclusive, que volta a aparecer? Talvez o hip hop com samba de Marcelo D2 seja uma primeira resposta. Los Hermanos é outro forte candidato a disseminar às novas gerações tão valiosa herança.

Estamos em fevereiro, mês de carnaval e, não por coincidência, escrevo este texto. Este ano o samba completa 90 anos. E parece que o Brasil hoje comemora esta data como se o gênero, já bem velhinho, fosse um parente no asilo que a gente se lembra no dia do aniversário, vai dar um beijo e logo parte pra voltar a relembrá-lo apenas no ano seguinte.

Talvez eu esteja exagerando. Talvez exista toda uma nova geração de bambas por vir. Talvez este samba ainda exista e esteja guardado em algum lugar ao qual eu, sinceramente, desconheço. Talvez ele esteja reservado aos guetos como quando surgiu. Talvez tenha a ver com a cidade pequena, com poucos carros, não sei. Talvez ainda, como disse Nelson Sargento sobre Cartola, o samba sequer chegou a existir. Talvez tenha sido apenas um sonho que a gente teve...


Quem é o colunista: Felipe Daros
O que faz: é publicitário, guitarrista e vocalista do grupo Ecos Falsos.
Pecado gastronômico: comida japonesa.
Melhor lugar do Brasil: São Paulo. O Rio de Janeiro é o mais bonito.
Fale com ele: [email protected]



Atualizado em 6 Set 2011.