Guia da Semana

Foto: Gabriel Oliveira


Primeiros Passos

Guia da Semana: Quando você descobriu sua vocação para a música?
Jair Rodrigues:
Morando em São Carlos, aos 17 anos, fui levar minha irmã mais nova, Maria Aparecida, para o teste de calouros. Para ela entrar no compasso, comecei a passar o ritmo e o chefe do conjunto perguntou se não queria fazer um teste. Fiz e passei, com um samba chamado Vivo Bem na Minha Terra, de Francisco Alves. (Ah se eu pudesse eu vivia, como um lorde na Inglaterra ou sultão na Turquia/ Mas não posso porque existe um porém, porque não troco minha terra pela terra de ninguém). Cantei de 1957 até 1959, em um restaurante da cidade, quando fui para São Paulo. Na cidade grande, trabalhava como alfaiate de dia e cantava à noite, ainda menor de idade. Com o troco que recebia dava para pagar até três meses do pensionato que morava.

Guia da Semana: Quem eram as suas referências da época? O que tocava na noite?
Jair:
Eu já cantava Augustinho dos Santos, Elizete Cardoso, Ângela Maria, Francisco Alves... Tudo. Porque era uma época em que você não aprendia só uma coisa. Claro que tinha coisas que gostava mais, mas quando passei a cantar na noite, aprendi todas as vertentes musicais, cantando até em inglês, italiano e espanhol, sem saber porra nenhuma, mas arriscava.

Guia da Semana: Você teve ajuda de algum cantor na época?
Jair:
Sim, foi a dupla de repentistas Venâncio e Corumbá que me levou para gravar na Philips através de uma apresentação deles. Sem saber, o evento estava cheio de gravadoras, eles me chamaram no palco e apresentaram como novo contratado da gravadora. Após a platéia me ouvir cantando Eu e o Rio (Rio, caminho que anda e vai resmungando, talvez uma dor/ Ah quanta pedra levaste, outra pedra deixaste sem vida e amor...), saí de lá com meu primeiro contrato, em 1962. Com um disco na mão, comecei a ter abertura e passei a tocar em todas as emissoras de rádio.

Guia da Semana: Quais as músicas que despontaram no álbum?
Jair:
No primeiro emplaquei quatro canções: uma é: "O morro não tem vez, o que ele fez já foi demais..."; a outra, "Feio, não é bonito, o morro existe, mas pede para se acabar"; a inédita: "Brigamos, ela foi embora, senti saudades pedi para voltar e ela voltou..." e mais um samba lá do Rio chamado Tem Bobo para Tudo. Com elas ganhei como sambista revelação de São Paulo, isso porque nessa época tinha uma rixa entre o samba paulista e carioca.

Guia da Semana: Qual foi o seu primeiro grande sucesso?
Jair:
Foi em 1964. Peguei uma música de um LP no Rio, de Emerson Menezes e Roberto Paes, e fui cantar em uma boate classe média/alta. Fiz um compacto simples primeiro para depois dar seqüência no LP e estourou em uma semana. A música que virou sucesso foi "Deixam que digam, que pense, que fale, deixa isso pra lá, o que que há, o que que tem. Eu não tô fazendo nada e você também, que tal bater um papo tão gostoso com alguém". Fui em todos os programas de auditórios, Chacrinha, Flávio Cavalcante, Jair de Taumaturgo. Quando veio o LP no final do ano ganhei como Melhor Cantor do Brasil.

Foto: Gabriel Oliveira
O Fusca vermelho é o seu xodó e foi adquirido através de um empregado.


Guia da Semana: A briga entre o samba paulista e carioca diminuiu a partir daí, então?
Jair:
Sim, porque quando pintei no Rio com essa música o pessoal achava que eu era carioca. Pensei: "Enganei vocês, sou é paulistão, meu!". Com isso, acabei com o negócio que falavam de que São Paulo era o túmulo do samba. Gozado, porque com esse samba reduzi bastante essa rixa, dando até uma abertura para outros cantores paulista lá, como Noite Ilustrada, Germano Mathias e tanto outros sambistas que tinham aqui e que não eram muito ´chegado´ na cidade maravilhosa.

Guia da Semana: Você tinha algum apelido na época?
Jair:
Nessa época o meu era cachorrão, porque chamava todo mundo de cachorrão. Foi o Raul Gil quem deu, era meu amigo e saíamos todas às noites. Tinha outro do público, na época em que lancei Deixa isso pra lá e ainda não era conhecido (entre 64 e 68), o pessoal me chamava somente como o ´homem da maozinha´. Só depois foram conhecer o Jair Rodrigues. Antes disso era só: "Olha que música bonita está cantando o ´homem da maozinha´". Era assim véio!

Amigos

Guia da Semana: Como foi o primeiro encontro com Elis Regina?
Jair:
Em 1965, conheci a Elis na boate no Beco das Garrafas, no Rio. Fui conversar no programa Almoço com as Estrelas, apresentado por Ailton e Lolita Rodrigues, onde tinha o apelido de garfinho de ouro (comia bastante). Chegando lá, dei de cara com a Elis e ficamos conversando. Rolou até um autógrafo dela para mim e meu para ela. Pediram para cantarmos e eu comecei com uma samba que ela gravou, Menino das Laranjas ("menino que vai pra feira, vender sua laranja até se acabar/ Filho de mãe solteira, cuja ignorância tem que sustentar"). Quanto terminei, ela começou o Deixa isso pra lá.

Guia da Semana: A partir daí começaram a trabalhar junto?
Jair:
Em um show criamos um poup-pourri chamado Dois na Bossa, com doze sambas. Cantamos no final, tivemos que dar bis e fizemos mais duas noites. Foi um sucesso da noite. Como éramos da mesma da Philips, a gravadora fez um disco ao vivo do encontro e fomos o primeiro a gravar um no formato no país. O disco vendeu para mais de 1 milhão de cópias. Enquanto isso, eu, o Wilson Simonal, Jorge Bem Jor, Caetano, Gil, Caetano e Nara Leão fomos contratados pela Record. A emissora criou também o programa Fino da Bossa comigo, a Elis e o Zimbo Trio. O programa ficou três anos no ar, mas só participei dois anos deles. Acabou porque cada um tinha que dar sequência as carreiras.

Guia da Semana: Quais eram as principais características de Elis?
Jair:
Ela tinha uma força e garra muito grande. Era capaz de ensaiar uma música 30 vezes, e cada vez que ela ensaiava, fazia diferente. Dessa forma, ensinou muita gente a ser mais profissional, mais artista. Ela sempre quis fazer as coisas 100% e quando saía 100%, ela queria 101%. Fui um pouco assim, mas no ensaio que não era tão ligado.

Guia da Semana: Nessa época você participou do festival da Record?
Jair:
Em 1966, fui chamado para apresentar o Canção pra Maria, que ficou em terceiro de 66 e o Disparada, primeiro lugar. Só sei que houve um embate muito grande entre Disparada e a Banda, cantada pelo Chico Buarque e Nara Leão. A nossa era a eleita do público, a outra, dos jurados. No fim acharam melhor premiar as duas para evitar confusão. Esse festival foi o melhor da história.

Foto: Gabriel Oliveira
"Não existe uma identidade da música dentro do país, todos os ritmos são brasileiros", enfatiza Jair.


Guia da Semana: Você foi um dos precursores dessa mistura de ritmos, que agora está muito presente na música brasileira. Como foi isso?
Jair:
Minha felicidade foi aparecer aqui nos anos 80 uma coisa chamada rap. Aí em 89, estava em um festival de música na Suíça e os Paralamas do Sucesso estavam juntos. Estávamos saindo do avião para pegar o ônibus, quando surgiu um papo, "Puxa, quem será que inventou esse rap? Será que foi nos EUA". E começaram a falar sobre os rapper americanos, da Europa. Herbert Viana, do meu lado, se levantou e foi no meio do ônibus para falar: "Gente, quero dizer a vocês que o precursor do rap está aqui entre nos. É o Jair Rodrigues". Os caras falaram "Poxa, o Jair?", Herbert respondeu. "É, com o Deixem que digam, que pensem, que falem (gesticulando com as mãos)". Isso porque antes não tinha esse lance da forma de se expressar, ao invés de cantar em cima do ritmo, a gente começava a falar.

Guia da Semana: Lembra de algum fato inusitado na época?
Jair:
Uma vez fui para Brasília, na época da repressão, fazer um show para os graduados (militares). Estava cantando e vi um general sentando, com cara de sério. A mulher dele estava próxima da pista, também sentada. Estavam comendo, cheguei perto da mulher, sentei no colo, ela me abraçou, cantamos e peguei o bife do prato do cara (risos). O pessoal pensou que ele ficaria bravo, mas quando terminei a música, o general se levantou, aplaudiu, abraçou e até pediu para tirar foto. Botei todo mundo para dançar e virou um carnaval. Em Brasília até hoje tem gente que lembra daquilo.

Guia da Semana: Conte-nos como é a sua amizade com o Pelé.
Jair:
Nos anos 60, nos tornamos amigos de tal maneira que aonde o Santos ia jogar eu ia junto. Tem uma história do lançamento de um livro dele, em 74, que ensinava algumas técnicas de futebol. O primeiro livro quem recebeu foi eu, com dedicatória: "Ao meu amigo Cachorrão, Jair Rodrigues, que aprenda a bater melhor na bola. Ass: Pelé". Eu pensei, vai ter troco. Quando ele fez a música Cidade Grande e fui gravar, soube que estava no Rio de Janeiro e chamei para botar a voz na música também. Ele enfatizou: "Pô Cachorrão, eu não sei cantar!". Retruquei. "Não tem problema, eu também não sei jogar bola". Fiz a dedicatória desse primeiro LP ao meu amigo Pelé, pedindo que aprenda a cantar melhor. Daí empatamos.

Guia da Semana: E esse movimento com as mãos, como foi que surgiu?
Jair:
Ele surgiu de uma brincadeira que fiz em 64, com o Hermeto Paschal em uma boate às 10h da noite para ensaiar. Falei: "Hermeto, trouxe uma música do Rio, assim, assim, nós estamos aqui, com pouca gente, vamos ensaiar?". Ele concordou e pediu para cantar a música, aí fiz o refrão de Deixa isso pra lá, sem fazer gesto e ele parou e ficou me olhando. Uns quatro ou cinco casais estavam prestando atenção e até aplaudiram. Continuamos o baile, passaram às 11h, meia-noite, e quando foi 3h, na nossa apresentação, uma pessoa falou. "Jair, canta aquela música que vocês ensaiaram no começo da noite!". Pedi pro Hermeto e ele já tinha esqueceu. Então fiz o refrão gesticulando com as mãos para ver se lembrava. O pessoal da salinha viu fazendo aquilo e quem estava junto se separou para começar a fazer o mesmo gesto. Gravei e levei o gesto para a televisão.

Guia da Semana: Falando nos seus filhos, o que acha de terem se espelhado em você e seguido a sua carreira?
Jair:
Quando Jairzinho tinha 9 anos e a Luciana 5anos, colocava eles para apresentar o meu show. "Senhoras e senhores, boa noite. E com vocês, o meu pai!" (lembra-se da época)... Acho que imitam só da forma de tratamento com o público, mas musicalmente cada um tem um ritmo próprio. A Luciana é uma artista eclética, por cantar vários tipos de música; o Jairzinho tem isso de uma outra forma, já que começou cedo na Turma do Balão Mágico, estudou música nos EUA (Berkeley), formado em violão, fez engenharia de som e pode atuar desde técnico de som, produtor e até maestro. Às vezes vou aos shows deles só para aprender.

Guia da Semana: O que é a música para você?
Jair:
Meu prato de todo o dia, pensamento, lazer, corpo, minha vestimenta. Quem não gosta de samba bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça, ou doente do pé. Mas quem não gosta da música, melhor não ter nascido.

Atualizado em 8 Mai 2014.