Guia da Semana

Foto: Divulgação

No final de 1968, o Brasil passou a viver um dos períodos mais negros de sua história. A ditadura militar resolveu endurecer e o então presidente, o general Costa e Silva, editou o famigerado Ato Institucional Nº 5 (AI-5) que, entre outros absurdos, fechou o Congresso Nacional e determinou a censura prévia. A intenção dessa última ordem era calar as vozes contrárias ao golpe presentes na música, no cinema e no teatro. O tiro, no entanto, saiu pela culatra. Paradoxalmente, em meio ao recrudescimento da ditadura, a produção artística brasileira encontrou um terreno fértil para deixar um legado cultural riquíssimo, poucas vezes visto antes ou depois.

Alguns dos melhores exemplos são os discos lançados pelo trio de ferro baiano/tropicalista logo no ano seguinte: Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. Cada um, no seu respectivo álbum epônimo de 1969, fizeram uma das mais radicais manifestações psicodélicas que se tem notícia no Brasil e que, na boa, não deve nada ao que de melhor e mais inovador era feito lá fora na época.

Os discos de Caetano (aquele da capa inteiramente branca ostentando apenas a assinatura do baiano) e de Gil (o que traz o clássico "Aquele Abraço") funcionaram como uma espécie de "carta de despedida", uma vez que ambos, logo depois, foram "convidados" pela ditadura a se retirar do país e partiram para o exílio em Londres. Nesses álbuns, tanto Caetano como Gil extrapolaram os limites da experimentação, só comparável ao que os Mutantes faziam então por aqui.

No disco de Gil, por exemplo, encontram-se maravilhas como Cérebro Eletrônico, um groove psicodélico furioso, a já citada Aquele Braço e uma versão de 2001, tão boa quanto a gravada por Arnaldo-Sérgio-Rita. Caetano, por sua vez, injeta rock´n´roll na canção tradicional Marinheiro Só, mistura o carnaval baiano ao verão do amor californiano na sua Atrás do Trio Elétrico e visita delicadamente a Carolina, de Chico Buarque.

Além disso, são como álbuns gêmeos, já que o time de músicos que acompanha Gil e Caetano em cada um dos trabalhos é o mesmo - Sérgio Barroso no baixo, Chiquinho de Moraes no piano e órgão, Wilson das Neves na bateria e o fenomenal Lanny Gordin na guitarra, além dos arranjos e da direção musical a cargo do mestre dos magos Rogério Duprat.

Lanny e Duprat, duas das pedras fundamentais do tropicalismo, também participam do disco de 1969 de Gal Costa, seu segundo trabalho solo (aquele com a capa ultra-psicodélica). O primeiro dela, lançado poucos meses antes, também em 1969, fora concebido e gravado no ano anterior e já mostrava a cantora quebrando todas as amarras do seu "bom-mocismo" de início de carreira. Uma obra-prima inegável. É neste segundo disco, no entanto, que Gal chutou tudo. Com o exílio de Gil e Caetano, sobrou para a cantora o papel de musa remanescente da Tropicália (ou porta-voz dos colegas banidos?). E ela não fez feio.

Com o auxílio de um ensandecido Lanny Gordin, Gal perpetra o que é considerado o melhor momento de sua carreira. O disco abre com uma composição de Caetano, Cinema Olympia, e parte para uma viagem oriental-psicodélica em Tuareg, do gênio Jorge Ben. A letra fala de um bandoleiro do deserto, mas, nas entrelinhas, remete à luta contra a ditadura vigente. Tudo bem sutil, tanto que os brucutus da censura não perceberam. Em Cultura e Civilização, a primeira das três do Gil que ela gravou no disco (as outras são Com Medo, Com Pedro e Objeto Sim, Objeto Não), Gal libera toda sua fúria, gritando alucinadamente "a cultura, a civilização, elas que se danem, ou não" sobre uma base roqueira não menos demente.

Gal ainda volta a Jorge Ben na clássica versão do clássico País Tropical, com participação de Caetano e Gil (óbvio). É de se pensar na ironia de ouvir ambos, no exílio londrino, cantando "moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza". Gal ainda incorpora uma Janis Joplin dos trópicos, na libertária Meu Nome É Gal, de Roberto e Erasmo, e em Empty Boat (adivinhe de quem? Caetano...). O disco encerra com Pulsars e Quasars, uma composição de Jards Macalé e Capinam, em que Gal, sem cerimônia, pede: "Cá e Gil me mandem notícias logo". Mais explícito, impossível.

Ouvindo estes três álbuns hoje em dia, nem parece que já se passaram 40 anos desde seus lançamentos. São obras obrigatórias para qualquer um que se interesse por boa música. Mostram que, apesar da linha dura militar, 1969 foi um ótimo ano para a música brasileira. Valem também para quem acha que Gil não passa de um músico-político falastrão, Caetano um chato anacrônico e Gal uma crooner preguiçosa. E para quem afirma que nunca se fez rock (isso mesmo, são discos de rock, na melhor acepção do termo) decente no Brasil. Num mundo ideal, seriam redescobertos pelas nossas novas gerações e reverenciados da maneira que merecem. Num país, porém, em que 8 em cada dez pessoas não sabem o que foi o AI-5, isso parece cada vez mais uma utopia.

Leia colunas anteriores de Alex Menotti:

? Quem Sabe Faz Ao Vivo


? É brasileiro? Não gosto...


? Em busca da empolgação perdida


Quem é o colunista: Alex Menotti

O que faz: Jornalista.

Pecado gastronômico: Carne de porco, esse animalzinho mágico

Melhor lugar do Brasil: São Paulo

O que ele ouve no carro, em casa e no IPod: Bandas de garagem dos anos 60, jazz, punk rock nova-iorquino dos anos 70, Spiritualized, Flaming Lips, Cartola e os sambistas da velha, Toquinho & Vinicius, James Brown, Dylan e por aí vai...

Fale com ele: [email protected]


Atualizado em 6 Set 2011.